O Anuário da PeixeBr tornou-se uma referência para o setor porque traça o panorama da piscicultura brasileira, mostra sua evolução e aponta tendências. Uma década de publicações é, sem dúvida, um marco para um setor que sempre viveu com uma carência enorme de dados e ainda, em grande parte vive, especialmente a pesca. Os dez anos de anuário permite avaliar as transformações vivenciadas pelo setor na última década e os desafios a serem enfrentados.
O Anuário 2024 aponta um crescimento de 3,1% na produção em 2023, atingindo o patamar de 887.029 toneladas, sendo 65,3% de tilápia (579.080 tons), 29,7% de peixes nativos (263.479 tons)) e 5% de outras espécies (44.470 tons). A produção de tilápia cresceu 5,2%, os peixes nativos tiveram uma queda de -1,3% e, as demais espécies, um crescimento de 2,86%, puxadas pela produção de Panga. O Paraná se distancia na liderança em relação aos demais estados, com uma produção de 213 mil toneladas e um crescimento de 9,9%, em seguida vem São Paulo com 82 mil toneladas e em terceiro, Minas Gerais, que surpreendeu com o crescimento de 12,6% e uma produção de 61 mil toneladas. Por fim, aparecem Rondônia em quarto lugar e Santa Catarina em quinto, praticamente empatados, com 56.500 toneladas e 56.100 toneladas, respectivamente.
Apesar do ritmo de crescimento do cultivo ter sido um pouco abaixo da média histórica por razões de ordem sanitária e climática, o ano de 2023 foi muito bom para a piscicultura brasileira. Com a demanda no mercado interno aquecida e a redução dos custos de produção, as margens melhoraram para o produtor e para a indústria. As exportações cresceram 4% em valor, atingindo U$$ 24,7 milhões (o preço do filé congelado, de 2022 para 2023, aumentou de U$$ 5,71 para U$$ 6,66/kg e para o filé fresco, de U$$ 5,57 para 6,82/kg), porém, reduziram o volume em 20%, reflexo do aumento do consumo interno, o que é uma boa notícia para o setor. O volume de crédito contraído pelo setor aumentou 18,7%, atingindo R$980 milhões, recorde histórico, sinalizando maior acesso e melhores perspectivas para a atividade.
Para o ano de 2024, o setor produtivo está otimista. Por um lado, as questões sanitárias foram, em parte, contornadas e a oferta de alevinos normalizadas, os custos de produção devem manter-se estáveis e a demanda deve continuar aquecida, mantendo os preços em bom patamar. A expectativa é de ampliação de investimentos na cadeia da tilápia.
Mas, estes 10 anos de apuração de dados pela PeixeBr sobre a evolução da piscicultura brasileira, revelam informações que merecem um esforço de avaliação dos avanços, apontar tendências e desafios do setor. Nesta perspectiva, é possível concluir que:
1. Em primeiro lugar, é importante destacar que a cadeia produtiva da tilápia e de peixes nativos vivem realidades e resultados muito diferentes. Enquanto a primeira atingiu um nível robusto de maturidade, a segunda, ainda precisa criar bases mais sólidas para o seu desenvolvimento. Evidentemente, as razões são as mais variadas, entre elas o fato da produção de tilápia ter uma dinâmica global, um pacote tecnológico e um mercado consolidado, enquanto os nativos exigem um esforço redobrado nesta direção. Esta análise, portanto, terá um foco mais específico na tilápia.
2. A tilapicultura desenvolveu um pacote tecnológico por empresas nacionais e transnacionais e instituições de pesquisa nas áreas de genética, nutrição, sanidade, equipamentos, sistemas de produção e demais áreas, que tem possibilitado elevar os níveis de produtividade e competividade do setor. E o setor passa por um acelerado processo de transição tecnológica assentada na inteligência artificial, melhoramento genético, nutrição e sanidade, como o uso de vacinas.
3. Os avanços no processo produtivo da tilápia impressiona e se estende ao longo de toda a cadeia, na produção primária, no fornecimento de tecnologias, na indústria de processamento, distribuição e logística. Neste processo, destacam-se novos entrantes na última década, empresas de nutrição, saúde animal e equipamentos, com atuação em outras cadeias e empresas privadas e cooperativas, com tradição na produção de frangos, suínos e bovinos, além defundos de investimento. Com o conhecimento e experiência em outras cadeias e aportes robustos com financiamento público e privado, a produção ganhou competitividade e abriu novos mercados. O Brasil passou de 285 mil toneladas de tilápia em 2014 para 579 mil toneladas em 2023, um aumento de 103%.
4. O mercado para a tilápia deu um salto. Por um lado, a tilápia caiu no gosto do brasileiro, ampliando de forma significativa a presença no mercado interno, que passou, segundo a PeixeBr, de um consumo de 1,47 kg/hab/ano em 2014 para 2,84 kg/hab/ano em 2023, aumento de 103%. O consumo do conjunto dos peixes de cultivo cresceu 53,2%, passando de 3 kg para 4,3 kg/hab/ano. Por outro, as empresas brasileiras, apostaram na ampliação do mercado externo e foram bem sucedidas. As vendas passaram de U$$ 11,7 milhões em 2020 para U$$ 24,6 milhões em 2022.
5. O ambiente de negócios também melhorou e contribuiu para dar mais segurança jurídica e estimular investimentos. Vários estados modernizaram a legislação e deram mais agilidade à emissão das licenças ambientais. O governo federal modernizou a legislação e agilizou os processos de Cessão em Águas da União. Vários entraves relacionados à concessão de crédito foram equacionados e as condições de acesso vem melhorando, etc.
Os desafios, porém, seguem sendo enormes:
1. Melhorar o ambiente de negócios, com o fim da tributação do PIS/COFINS sobre a ração; modernização da legislação para o licenciamento ambiental nos estados que ainda persistem os problemas, dinamização dos processos de Cessão de Águas da União, criação de novas e mais robustas linhas de crédito, em especial, via BNDES, assistência técnica aos aquicultores familiares, etc.
2. Consolidar modelos de desenvolvimento sustentáveis de produção do ponto de vista ambiental, social e econômico, pois esta será cada vez mais uma condicionante para o acesso ao mercado nacional e internacional;
3. Fortalecer a organização da cadeia produtiva, verticalizando, integrando e ampliando o cooperativismo e o associativismo. A consolidação do setor passa por uma maior cooperação entre empresas, cooperativas, aquicultores. Existe mercado para todos. Portanto, se houver cooperação no interior da cadeia, o setor no seu conjunto se torna mais forte e preparado para enfrentar os desafios e tornar-se mais competitivo a nível global. Cito um desafio a vencer conjuntamente, é preciso investir em uma indústria nacional para a extração de colágeno da pele da tilápia e, assim, elevar os ganhos;
4. Desenvolver políticas, sistemas e modelos de produção que sejam includentes. Destaco isso com preocupação, porque, com o aumento da tecnificação e da competitividade, a exemplo de outras cadeias, muitos aquicultores serão excluídos do processo produtivo. São mais de 230 mil piscicultores no país, que sem uma política de apoio e organização em torno do associativismo e cooperativismo e/ou empresas integradoras, fatalmente muitos ficarão pelo caminho.
5. Intensificar os esforços na busca por resultados, através da adoção de tecnologias e uma gestão profissional nos empreendimentos, visando reduzir custos, elevar a produtividade, rentabilidade e competitividade.
6. Priorizar programas e ações que assegurem os requisitos de sanidade e biossegurança, fator determinante para o sucesso ou fracasso da produção nacional. Este deve ser um compromisso do setor e do governo com ações focadas e colaborativas;
7. Fortalecer a organização sindical e ampliar a representação e ação política junto ao governo e ao congresso nacional, na defesa dos interesses do setor.
8. Enfim, estamos no caminho certo, mas é preciso pensar grande, de forma conjunta e no longo prazo.
ALTEMIR GREGOLIN
Médico Veterinário, Mestre em Desenvolvimento Rural, Professor da FGV, Consultor e Ex Ministro da Pesca e Aquicultura